Soledad impura por Diana Araujo Prereira
*
Um profundo sopro de ar.
Espelhos, pequenos e nublados,
rodeando-nos e refletindo-nos.
A morte está perto. Mas você
até mais próxima.
Levanto a mão. Acaricio teus cabelos
e teus seios.
Roxo de emoção.
Expludo. Desapareço.
Pouca coisa é a vida ante emoção tão certa.
Teu corpo nu saiu pelo meu umbigo
e do meu ventre. É assim como te reconheço.
Tuas pernas e tuas cadeiras antes eu já tinha beijado.
Como cada um dos teus braços abertos
e dos teus lábios ainda fechados.
Minha morte em tuas palavras.
**
Toupeira. Campeão da solidão.
Católico até na meleca.
Lascivo quase sempre.
Construtor de origamis: de bolas
e de aves bem dobradas.
Sem cara definida. Salvo
pelos lábios de peixe. Pelas escamas.
Crescido sem entender a dor nem as desgraças.
Capturado pela morte, num jogo
que começou inocente e ao qual não nos convidaram.
Resgatado por essa mesma inocência.
“Cachorros das ruas” por Leila Yatim
I
Polvo
Dente do rato
Pego no flagra
Ato escuro antigo
Radicalmente imoral
Que marcou
Toda minha vida
Colher dos frutos
Na outra vida sempre
Colado ao teu corpo
E sem mãos
“Tanto milho jogado
E eu sem bico”
Velho, ancião
Desde a tenra infância
Cheio
Por qualquer mesquinhez
Satisfeito e até feliz
Diante de qualquer migalha
Se minha vida foi
Já nada foi
Somente agora
Radiante e constante
A que te pego
Leitor
A que te pego
Alicate tesoura martelo
Para penetrar a lata
II
Uma linda cidade
Apareceu esta manhã
Na minha janela
A observo como um gato
Observa ao rato
Salta a linda
E não para chamar minha atenção
Dá curtos rodeios
Morre sozinha do susto
Do susto apenas morre
Quieta permanece
Diante da minha janela
Sem habitantes sem vida salva
Em sua circulação de trânsito
Em sua deslumbrante e eterna manhã
Como eternos são meus olhos
E minhas mãos de polvo
E meu olhar de gato
E meu corpo colado ao teu
Impotente e estéril
Diante de sua beleza de alfinetes
De afogamento de lágrimas
Já incontidos
III
Dou de beber ao filhote
Que sou
Ao cachorro da rua
Fumaça aromática das cidades
Única alma justa
Pela qual não se incomoda
Esta pecaminosa cidade
Cachorro que fareja todos os dias
Nossas almas
E por isso vai de cabeça baixa
E com vergonha alheia
Nos outorga seu perdão
Enquanto a TV segue dando
Conselhos de vida
De voz cheia
E o pobre predicador
Passa calor pelo seu paletó
Tanto por andar cheio de fé
Para de sofrer Jesus Cristo vem
Cristo te ama
E as flores intocadas e intocáveos
Dos galhos mais acima
Das árvores
Onde os anjos se entretem
Diminutos anjos
Das cidades subdesenvolvidas
Disso dão fé.
IV
Sob a voz enfim
Não há uma nuvem mais
Neste quadrinho
Me retraio
Como o polvo
Como o gato entediado
Que sou
Como o rato
Que guarda seu dente
Para maio.
Anjos da sombra
E anjos da luz
Fazem migalhas
Sobre o caixilho
Da minha janela
Sobre a moldura
Que é esta cidade.
Não nos separa apenas
A cor da pele
Mas também o coração
Mas são anjos todos.
Cachorros vagabundos
Tolerantes com nossa humanidade.
Cachorros das ruas.
[Por consideração com meus estudantes] por Leonardo Vieira de Almeida
Por consideração com meus estudantes
Não ensinarei mais
Por compaixão com eles
Não me verão mais na aula
Comi do fruto proibido
Que vamos fazer
Deflorei
E tive em uma só mão
A cabeça atônita
Da Medusa
Não sou desta época
Excessivos têm sido meus anos
São minhas lembranças
A lua acolhida como uma criancinha
O diabo, o pobre, não o poderoso
Amontoado entre as ruas
Ubíquo
E eu escondendo o vivido
Como uma ferida de morte
Não sou do presente
Cuido de uma flor
De cemitério
E penteio a velhez
Do poema
E o oleio
Porque necessita
Por isso é que deixo
de ensinar e deixo
meus petrechos e minhas agulhas
de caçar moscas em voo
de capturar aranhas
e auscultar meu coração
de mercúrio minha alma
de éter insolúvel
a este ar nosso
E estas sabedorias
ociosas e como extravagantes
e também inúteis
ou pouco práticas
e inaplicáveis
e dolorosas e demasiado cheias
e invariavelmente ocultas
[Imaginar-me o mar] por Leonardo Vieira de Almeida
Imaginar-me o mar e um feito fortuito qualquer
como agora o ar pesado o sol com sua cubeta
de luz permanente meus olhos em outro tempo ou
outro lugar meus olhos sob as plantas de meus pés
na praia sobre a areia de meus pés até a
água que também é de areia e prodigioso sol
de granito e de estranha alegria a cidade quieta
como à espera com boca e olhos cerrados e que
como toda cidade é um sexo grande e dormi-
do… isto sabem perceber os poetas autênticos
e também os falsos e este é o problema da
poesia… e tanto sol ativo em jornadas de i-
mensuráveis horas atrigueirando-me sem remédio
até os pés mesmos de areia molhada de mar de
boca de água de mar de língua de crustáceo sem
pinças nem desconfiança pura entrega de caranguejo
apenas e em correspondência direta com este sol
quieto sobre as paredes da cidade que esperam
desde a alba o olmo que possa assegurar que
apesar da modorra pelo amontoado de sua alma ali
vá um indivíduo sóbrio pela calçada que sempre
iráum indivíduo sóbrio pela calçada ainda que nos
achemos em nossa penúltima hora e até na
derradeira… que não acertaram comigo que não va-
leu a pena senão tão só para mim mesmo que tudo
arranhei unicamente às últimas bebi mas para ver
se o sabes se o viste se o guardas enovelado no
bolso pequeno da camisa como um tíquete
empapado de água de mar como teus pés sujeitos
pela pura alegria da praia pela travessura da
praia pelo amor que não tem extensão nem
profundidade maior que um sorriso e como este
evento absolutamente intranscendente e fortui-
to… ali está nossa glória para qualquer de
nós e a justificação para nossa tolice de
esperar maior iluminação que a que vem a
cubos de parte de um sol modesto e não menos fa-
miliar e não menos curioso que a sobrancelha do
sujeito que caminha sóbrio pela avenida que pegamos
em um lenço vivo um buquê aberto entre meu
coração e o teu
“Poema em pampa” por Leonardo Vieira de Almeida
Tudo quieto e findo
E pura sensação de paz
Como agora
Um cubo desabitado,
Sóbrio
E com aroma de madeiras
Porém fruto das sombras
E das luzes dos dias
A descoberto
Em flagrante
A viagem, o regresso
E a espera de esperar
Ave metálica no interior
Desse cubo bendito
Alvoroço estridente
E não menos invisível
Entre aroma de madeiras
Hei de morrer, hei de despedir-me
Ou ao menos hei de empreender
Algum tipo de viagem
Vagabundear um átimo
Pelo que somos
Assim me olha Germán
E me contempla
Minha amorosa mãe já
Desaparecida
Ave de asas no topo
Entre os ângulos de meu cubo
Ânsias de amor, desassossego
Ante a ausência de janelas
Você é minha janela, a paz,
A bem-aventurada alegria
Neste mundo
E a roda, a aspa,
O salto no vazio
Que somos
No interior de seu corpo
Também tênue gaze
E o leve
Apenas se resiste
Fui um poeta entretido
Pela pele e seu sabor
E suas morenas e cálidas mãos
Que tentam todavia
As polegadas de meu ser tornadiço
Às suas carícias
Sensível a aura de sua espera
Flor de mirada aberta e fecunda
Talvez não saiba morrer
Talvez decepcione no
Último minuto
Metálica ave incômoda
De bico e garras
Contra superfície tão brunida
Do cubo
De ombros e esplêndida cabeça
Ante o pesado do mundo
Por dentro
“Visão de Lima” por Bruno Eliezer Melo Martins
A cidade
Debaixo de uma serpente ferida
A cidade minha cidade
Feito pó
Minha mãe meu pai
Meus irmãos ausentes
E esta nuvem de terra
E esta serpente de terra
Sobre meu atônito
E silencioso coração
“Visão de La Paz” por Bruno Eliezer Melo Martins
Sobre os quatro mil
metros de altura
te escrevo. Sobre
As trinta mil
Pessoas que vi
pelo caminho.
O ar inóspito
Para a poesia.
Esta atalaya enorme é
para o controle de
vidas e almas
e sexualidades.
Toda Bolívia se encontra
no ropeiro. Também
o Perú. E provavelmente
o completo casco andino.
Fechados no ropeiro
de nossos desejos
e de nossa inadimplente dignidade.
Um gigantesco amaru se afoga
pela dura costra
que o separa da superfície.
um abrasado rabugento
agora mesmo o pisa.
Ver e correr e ser derrotado
infinitas vezes.
Em que onda
roubar o ar.
Através de que esconderijo
apalpar finalmente tuas pernas,
teu cu redondo,
tua espumosa boceta.
Todos estão salvos.
Todos são inocentes
sobre tão rígido ice cream do mundo.
Nem todas as burlas do diabo podem dissimular
nossos dentes de leite.
No mundo andino tudo passa
por um agudo período de refrigeração.
Diana Araujo Prereira (Río de Janeiro, Brasil, 1972). Tiene tres poemarios publicados: V(i)entreadentro (con Adolfo Montejo Navas, RJ, plaquette poética, 2006), Otras Palabras/Outras Palavras (RJ, editorial 7Letras, 2008) y Horizontes Partidos (New York, Artepoética Press, 2016). Participó como poeta de las antologías Cancionero Pluvial del Iguazú (Lima, Casa del Poeta Peruano, 2012), Multilingual Anthology (New York, Artepoética Press, 1014). Ha sido invitada a Festivales Internacionales de Poesía: IX Encuentro Literario Internacional de Misiones (Argentina, 2012), Casa Tomada (Casa de las Américas, Cuba, 2013), The Americas Poetry Festival of New Yokk (Nueva York, 2014) y el VIII Festival Internacional de Poesía de Guayaquil Ileana Espinel Cedeño (2015). Ha ganado el primer lugar del Premio Cataratas de Conto e Poesia, de la Fundación Cultural de Foz do Iguaçu, en la modalidad cuento, en 2010. También es Profesora de Literatura en la Universidad Federal de la Integración Latinoamericana (UNILA), en Foz do Iguaçu, Brasil. Se doctoró en Literaturas Hispánicas por la Universidad Federal de Río de Janeiro, en convenio con la Universidad de Sevilla. Como traductora, ha colaborado en la traducción de los siguientes poetas (en versión para el portugués y el español): Antonio Cisneros, Pedro Granados, Juan Gelman, Omar Lara, Hildebrando Pérez Grande, Marco Lucchesi, Carlos Aguasaco y Mercedes Roffé, así como de diversos libros de arte (Anna Bella Geiger, Regina Silveira, Paulo Bruscky, Liliana Porter, entre otros).
Leila Yatim. Possui graduação em Relações Internacionais pela Faculdade Anglo-Americano (2012), especialização em Gestão de Organizações Públicas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrado em Sociedade, Cultura e Fronteiras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Atualmente é assistente em administração na Pró-Reitoria de Relações Institucionais e Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e professora do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Dinâmica das Cataratas.
Leonardo Vieira de Almeida. Nos aunamos a lo que dice William Wilson:
É com grande pesar que comunicamos o falecimento, no dia 23 de fevereiro de 2014, do colega e colaborador de nosso Ensaios sobre literatura do medo, Leonardo Vieira de Almeida.
Leonardo era escritor, professor substituto de Literatura Brasileira (UERJ – FFP) e pesquisador da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio. Morreu jovem, com uma carreira promissora pela frente, e nos deixa saudosos de sua gentileza e inteligência.
Bruno Eliezer Melo Martins, é formado em Letras – Artes e Medição Cultural pela UNILA. Tem desenvolvido trabalhos sobre a poética de José Lezama Lima e tem interesse em Literatura árabe, em especial O livro das Mil e uma noites. Realiza traduções do Espanhol e Francês para o Português e também desenvolve seus próprios textos com pretensões literárias.
Pedro Granados, Lima, Perú, 1955. Poemarios: Sin motivo aparente (1978), Juego de manos (1984), Vía expresa (1986), El muro de las memorias (1989), El fuego que no es el sol (1993), El corazón y la escritura (1996), Lo penúltimo (1998), Desde el más allá (2002), Poesía para teatro (2010), Poemas en hucha (2012), Activado (2014) y ROXOSOL (in progress).
Me impresionan igual o aún más, sus poemas, en portugués. Muy buenas traducciones.
Muchas gracias, estimada Isabel. Pedro.