SOL DÓNDE NO HAY SOL: Vallejo em camadas/ Amálio Pinheiro*

Foto por Rosario Bartolini

Soletrem este título em voz alta, por favor. Não à toa surge em seguida ao livro de poemas ROXOSOL, do mesmo autor.

Com Pedro Granados temos de ler (tresler?) Vallejo passando de fragmentos a “fermentos” (de sol), o mito Inkarri sempre nos espreitando agachado em permanente e fervente levedura, desde o seu reconhecimento em Heraldos Negros, à plasmação em Trilce e à disseminação trifurcada nos PoemasPóstumos. A presença concreta de um arquipélago borbulhante solar andino-universal atravessa, por uma espécie de polidialética nativa, situada aquém e além, a linear separação em fragmentos típica da subjetividade moderna, condenada à temporalidade melancólica da sucessão epocal. Vemos assim que a incorporação vanguardista trilceana sempre se dá pelo crivo de uma matéria vital saída do barro primordial, que foi traduzido (huaco) em escultura, artesanato, arquitetura; e também em vozes e, conforme Granados, “algaravias” da paisagem da cultura.

Enorme benefício teórico e prático-analítico, que insere, em vaivém, rigorosamente, os elementos temáticos e conceituais dos conteúdos dentro da insurreição das formas significantes (tão,ao mesmo tempo, plurais, díspares e compactas), que o poeta de Santiago de Chuco desdobra com variações e implicações múltiplas em todos os gêneros, sua biografia inclusa. Granados pode então ir se afastando de  todas as leituras saídas de uma interpretação, em estado de clausura logocêntrica,  de significados conteudistas finais “profundos”, que tendem ao coroamento de um humanismo  socialista essencializante e a um fechamento semântico, centrado nas figuras do índio, do operário, do órfão, do idioma etc. O que busca Granados em Vallejoé o devir de  uma cidadania quase ou pré-humanoide (conforme o mostra vallejianamente, por exemplo, nas figurasdo “megaterio” e do “quadrúpedo intensivo”) em arquipélago universal, vinculada, numa vertente fêmeo-andino-mestiça, a partir da paisagem animal, vegetal e mineral, a um multinaturalismo com base numa erótica/ética musical e cromática.Uma interpretação conteudista nos distanciaria do primitivismo ou nativismo inocente e inclusivo que Granados observa justamente em Trilce: “Originalidad o complejidad, puntualizamos nosotros, fruto de mantener un “nativismo” no episódico, sino inclusivo y palpitante, el cual desarrollará a plenitud justo en aquel poemario”.

Daí a importância de Pedro Granados enfatizar a distinção fundante que faz Vallejo entre “vontade” e “sensibilidade” indígenas, pois somente esta última, liberada da moldura lexical e sequencial das línguas flexionais, coloca — melhor dizendo, entranha, incrusta em filigrana — o sol, o andino, o animal na nervura do texto. Isto é, o sol esparrama-se mesmo, e especialmente, quando e onde não está presente nem é mencionado: “Sol Dónde No Hay Sol”. Ou, como diria o poeta de Trilce I: “Seis de la tarde / DE LOS MÁS SOBERBIOS BEMOLES”.A poesia do peruano entretece e revira tanta coisa que não necessita, despreza até, qualquer resolução acabada.Granados vai mostrando como o “modo de ser político” em Vallejo – “los grandes movimientos animales” sob a fermentação solar – , num incessante aperfeiçoamento, desvia-se das políticas vigentes, caudatárias estas de ontologias ocidentais binárias. Há aí também uma política da linguagem: qualquer separação entre homem e paisagem torna inútil qualquer separação entre o quíchua e o castelhano.

Mais ainda: como esse SOL se dissemina vocal, fônica, gráfica, musical e cromaticamente, ao modo de uma espécie de treliça de caramanchão que compactaas avassaladoras variações do miúdo prolífico (daí as invenções sintáticas e ortográficas dentro das enumerações de perder o fôlego), pode iluminar o mundo inteiro na página exígua. Os fermentos solares, a partir das reverberações míticas na paisagem, acionam, em Vallejo, as propriedades sonoras/visuais/gráficas intensificadas ao máximo pelas capacidades rítmicas e prosódicas do idioma. Nessa direção, o clamor metonímico de tantas passagens trilceanas já antecipa, por volta de 50 anos antes, textos radicais e barroquistas do continente, tais quais, para ficar no Brasil, Catatau, de Paulo Leminski, ou Galáxias, de Haroldo de Campos.

Alinhemos algumas companhias,severamente selecionadas por Granados, do Cholo mundial. Antes e sempre, insistamos, toda a paisagem natural e o entorno cultural: montanhas, pessoas, povos, objetos. José María Arguedas: “… no puedo creer que un río no sea un hombre tan vivo como nosotros”. Destaque para “Zorro de arriba y zorro de abajo”. O grande achado do “Landó por bulerías” (o lundu, tão caro a Villa-Lobos) de Micky González, numTrilceagora já em glossolalias hispano-quíchuas, peruano-afro-flamencas, uma sorte de “cante de ida y vuelta” levado às últimas consequências. Ou como anota Vallejo em “Contra el secreto professional”: “Quizás el tono indoamericano en el estilo o en el alma?”.

Amálio Pinheiro

Outubro de 2020

*Amálio Pinheiro, el más importante estudioso (O abalo corpográfico) y traductor (A dedo, Trilce) de César Vallejo, incluido en el grupo Haroldo de Campos, del Brasil.  Como en el caso de Juan Javier Rivera, hace un par de años solicité a Amálio unas palabras para la presentación de un libro de ensayos, “César Vallejo: Sol donde no hay Sol”; pero como la cosa se alarga demasiado o, incluso, acaso ya no se publique como tal (sino como otra cosa y con otro título), por esta razón procedo a publicar su “Prólogo”.  

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