Às 2 da tarde aconteceu o previsível e até esperado. Que droga, e justo num feriadão prolongado como esse, quando não há ninguém que possa me dar uma mãozinha. Sempre tinha esperado pelo golpe de vento, pelo golpe fatal da sorte e outros golpes mais que cedo ou tarde acabam chegando… quase podia escutar o Vallejo dizendo “hay golpes en la vida… yo no sé”… e eu menos ainda. Agora é esperar para ver se eu dou sorte, uma vez na vida pelo menos. Com a porta trancada por fora, sem as chaves nem para entrar nem para sair do prédio, ou entro em pânico ou começo a rir de mim mesma, enfim tento encontrar algum consolo estranho na ironia da vida… ou qualquer chavão desses que pulam dos discursos e livros de auto-ajuda… “nada é por acaso”… “tudo tem sua razão de ser”… bom, pelo menos algumas calorias vai dar para perder, de tanto subir e descer essas benditas escadas.
Um edifício de três andares, com um apartamento por andar. E numa rua deserta, felizmente deserta, uma ilha de silêncio em plena cidade cosmopolita e aberrantemente ruidosa. Mas com o primeiro andar vazio, sem morador algum – problemas de herança e divisão familiar – só resta a senhora solitária com a filha solitária do segundo andar. Só que por incrível que pareça elas estão bem menos solitárias hoje, nenhuma das duas dá qualquer sinal de que vai voltar para casa.
Com tanto telefone, celular, email, msn, e sei lá mais o que, quando uma pessoa fica presa, fica simplesmente presa, e não tem como ligar, ou se conectar, e nem gritar… porque com tanta mania de segurança… não tem vizinho que escute, e nem temos porteiro, e o vento bateu a porta em um segundo em que fui deixar o lixo no corredor. E eu de pijama, menos mal, não estou de calcinha ou pelada, como naquele conto do homem nu, mas ao invés de apenas passar vergonha não tenho como escapar.
Eu aqui… já vão horas… já forcei todas as portas, já gritei até ficar sem voz do buraquinho do vidro quebrado da janela, já soquei as paredes… e nem sinal de nada. Estou começando a ficar com fome, nem a droga do café da manhã eu consegui tomar. Mania besta de limpeza… Menos mal que não tirei as meias, já está escurecendo, esfriando, adoro essas meias…
É estranho como o olho no escuro acaba se acostumando com a falta de luz. Há algum processo das células que fabricam o escuro quando fechamos os olhos. Me lembro do Borges, coitado, tendo que aprender a usar essa outra visão, a das células que fabricam o escuro e leem os vazios do real, preenchendo-os com outros tons de outro real.
Aquele filósofo italiano, como é mesmo o nome? fala que contemporâneo é quem vê no silêncio do seu tempo, no vazio ou na escuridão do seu tempo, as inserções de outros tempos, de passados anacrônicos ou sonhos de futuro. Não me sinto mais contemporânea por não enxergar nadinha de nada. Me sinto é bem assustada. Se aparecer uma barata nojenta vou tentar dar uma de Clarice Lispector, mas acho que não vai funcionar… Bom, o olho vai mesmo se acostumando com a escuridão…
Já levo três dias esperando que alguém apareça, uma náufraga em plena cidade super povoada, ouvindo o telefone tocar sem poder fazer nada… ouvindo a barriga roncar e tentando sorrir pensando na baixa calórica dessa situação ridícula… que “algum sentido transcendental tem que ter para a existência”…
Quando por fim as vizinhas retornam ao lar, estou desmaiada na sua porta, me encontram aí, jogada no chão depois de roer as plantas que enfeitavam o corredor. Já mais verde que branca, desperto no hospital toda espetada e remexida.
A lição? Não há tragédia sem uma boa dose de ridícula circunstância; não há mistério sem um bom tom de ironia.
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