Leitura de uma anatomia: a poesia brasileira contemporânea e os ossos do ofício

“A poesia de Pedro Granados comparece aqui por meio de uma tradução assinada por Leila Yatim. O poema faz a descrição da cidade de Samaypata, na Bolivia. Tecem os versos, por meio de uma dicção objetiva, de contornos sintáticos condensados, a memória particular do lugar, reduzido a uma visão disfórica, ainda que o passado do sujeito, que emana como voz a mirar e a mirar-se nesse espaço e tempo que retorna, se nutra de algumas lembranças menos marcadas pela imagem da morte”

Susanna Busato

Alturas de Samaypata

Tradução Leila Yatim

I

Samaypata é um Macchu Picchu em pequeno,

nos dizem. E o vulgo acerta.

Hora e meia custa deixar atrás

o calor de Santa Cruz de La Sierra.

E instalar-se. Passar

pelo olho da agulha de suas ruas.

Sem tocar a pedra.

Sem pôr as narinas sobre a roca fria.

Saber que Samaypata nos espera.

Para morrer. Para viver

quiçá ainda mais desta maneira.

Com sua mansa arquitetura sob nossos pés,

isso nos dize.

Com sua impenetrável tela de ar,

aquilo que nos ilustra.

Samaypata e a arte de morrer,

de ir morrendo enquanto caímos

em seu profundo poço.

Como em Machu Picchu.

Ainda que samaypata é a morte pessoal,

nem comunitária nem sideral. Individual apenas.

Um dia fomos ali

com nossa índia camba

de longos cabelos, fortes e escuros.

Um dia ali fomos, em Lima,

quando éramos crianças

e brincávamos em volta

de uma de suas huacas empoeiradas.

O gol era a morte,

mas isto ainda não sabíamos.

E o alvoroço,

a mesma alegria de agora. Escura alegria.

Sem pôr as mãos sobre a roca dura

nem os olhos fechados sobre a fria pedra.

II

Pertencemos a uma família tão antiga

como a dos primeiros homens da planura

Ainda que na montanha também encontram

nossas cinzas.

Fazer o amor sobre minha camba

é como penetrar dentro de um muro.

Como fazer o amor a uma rosa negra.

Samaypata é a fêmea

escondida entre a folhagem.

Pernas e quadris de mulher.

E tetinhas de cadela.

Assim era aquela escura moça.

E a pinga vira couro.

Por continuar caído sobre a pedra.

E os dentes teus saltam demais e os braços

para melhor mordê-la e abraçá-la.

E as panturrilhas ficam como borracha

para te impulsar

e ir conhecendo a arte de morrer em Samaypata.

Sem respirar a pedra nem lamber a roca dura

nem jazer de bruços no fundo do abismo.

III

O regresso desde Samaypata

me trouxe aqui.

Que não é Samaypata, isso está claro.

Que não sou eu, também.

Que não é ninguém, talvez. Senão sozinho

certa miragem de luzes e altos edifícios

sobre a paciente erva.

IV

Um mandar pode ser

qualquer bocado.

Por isso escreves apesar

de teu sentimento impuro.

Não há um lugar nem um tempo

ideal. Por isso

aproximas tua cabeça

ao abismo do papel.

Samaypata há deixado

um largo rastro de estrelas.

De aglomeradas estrelas de morte.

Meia hora menos dura

e o caminho de volta ao plano.

A investida do calor

de Santa Cruz de La Sierra.

Ao assalto do frio de Boston.

Mesmo que por agora vivas

dentro do avião de tuas lembranças.

E o fato próximo futuro

seja o de tua própria extinção.

Quiçá em Samaypata.

Quiçá tocando a louça mesma

daquelas esplêndidas estrelas.

Com nossa gota de sombra confundida

e feliz entre tantas outras sombras.

Mas isto não sabes ainda. E por isso escreves

com tua solidão impura.

Pela metade sozinha. Acompanhada

pela metade

Não há um lugar nem um tempo

ideal.

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