A identidade brasileira não existe, mas a ideia de uma “identidade brasileira” existe. Dela não só se pode falar, como foi inventada para que se fale dela. Essa ideia é um instrumento político, uma palavra de ordem ideológica que conjura um ente imaginário, e não um conceito antropológico referente a uma condição psicossocial empírica. “Identidade brasileira” não é uma noção descritiva, mas uma noção normativa. Não é um fato, mas um valor; um valor gestado historicamente em certas esferas de poder e imposto com violência, sutil ou brutal, sobre povos, comunidades e pessoas vinculados à própria revelia a um certo sujeito de direito público internacional, o Estado-Nação chamado Brasil.
— “Podemos falar de uma identidade brasileira? Se sim, em que consiste?”
resposta à pergunta da jornalista e crítica literária Isabel Lucas, que preparava uma matéria para o jornal português Público.
Talvez seja preciso refletir separadamente sobre o substantivo e o adjetivo nessa expressão provocativa de “identidade brasileira”.
Anos atrás, escrevi (cito de memória) isto em resposta à pergunta “O Brasil tem jeito?”, sugerida a mim pela revista Cult:
O Brasil não existe: o que existe é uma multiplicidade de povos, indígenas e não-indígenas, baixo o tacão de uma elite corrupta, brutal e gananciosa, povos unificados à força por um sistema mediático e policial que finge constituir-se em um Estado-Nação territorial. Um lugar que é o paraíso dos ricos e o inferno dos pobres. Mas entre o paraíso e o inferno, existe a terra. E a terra é dos índios. Isto posto, no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.
A questão da “identidade brasileira” se insere precisamente nesse “exceto”, nessa exceção — nessa diferença que mal se esconde atrás da noção-fantasma de uma “identidade brasileira”.
A identidade brasileira não existe, mas a ideia de uma “identidade brasileira” existe. Dela não só se pode falar, como foi inventada para que se fale dela. Essa ideia é um instrumento político, uma palavra de ordem ideológica que conjura um ente imaginário, e não um conceito antropológico referente a uma condição psicossocial empírica. “Identidade brasileira” não é uma noção descritiva, mas uma noção normativa. Não é um fato, mas um valor; um valor gestado historicamente em certas esferas de poder e imposto com violência, sutil ou brutal, sobre povos, comunidades e pessoas vinculados à própria revelia a um certo sujeito de direito público internacional, o Estado-Nação chamado Brasil.
Naturalmente, existe uma ”identidade brasileira”, pois existe a carteira de identidade brasileira (e o passaporte, a carteira de habilitação, as certidões notariais, os diplomas escolares etc.), um documento emitido pelo distribuidor autorizado de identidades nesta parte do planeta, o Estado dito “nacional”. Existe uma língua brasileira, aliás muito parecida com o português, mas sempre, como toda língua, em situação de variação contínua: variação geográfica, étnica, social, geracional. Variação, também, do que é dizível, e sobretudo do que é dito nessas variantes. Isso sem contarmos as centenas de línguas indígenas faladas no país (entre 150 e 250, conforme os critérios de recorte). A partir daí… Torcer pela equipe verde e amarela nas copas do mundo de futebol, assistir a TV Globo e o SBT, ou lembrar todo dia que em 2018 um canalha da pior espécie foi eleito a Presidente da República não basta para definir identidade brasileira de ninguém. Ou talvez sim, no caso de muitos daqueles que votaram no canalha.
Existe, é claro, uma história do Brasil, uma história da constituição deste Estado-nação que foi e continua a ser um Estado antes de ser uma Nação. O Brasil é um país cuja consistência político-territorial se deve à estrambótica, surreal transferência de uma corte metropolitana europeia para sua colônia tropical. Um país cuja independência formal foi proclamada por um imperador português, futuro rei de seu país de origem, filho de outro rei de lá. Um país cuja república foi decretada um golpe militar, e cuja pseudodemocracia é tutelada desde sempre por essa casta bronca dos homens das casernas. Um país onde a tortura é uma instituição nacional, praticada diariamente nas delegacias, celebrada publicamente por altas autoridades, e admirada pela considerável porção covarde e mesquinha de nossa classe média. Um país onde os pobres, negros e indígenas, na cidade e no campo, são sistematicamente trucidados por jagunços a serviço da classe proprietária “branca”. Onde todo ano milhares de mulheres são estupradas e mortas por seus amorosos companheiros. Onde lutar contra a devastação do ambiente é receber uma sentença de morte. E assim por diante.
O Brasil é um país estruturado geneticamente pelo instituto da escravidão, negra e indígena. Se existe algo como uma “identidade brasileira”, esta teria de consistir em uma certa qualidade sinistra, difusa das relações sociais, onde toda diferença é gatilho para o ódio; no descaso, não isento de hostilidade, diante de uma natureza cada vez mais devastada; em uma certa obsequiosidade admirativa diante da força bruta e da riqueza ostentatória; na imagem vaidosa que se tem da imagem que se teria do país no exterior. Essas características, que, escusado dizer, estão longe de serem compartilhadas igualmente por todos os habitantes do Brasil, são continuamente alimentadas por um um habitus entranhado nas instituições nacionais, proveniente do espezinhamento multissecular dos povos indígenas e da população escravizada de origem africana.
O Brasil permanece sendo o que sempre foi, no plano real como no plano imaginário: uma plantation escravista, de um lado, e uma fronteira hostil a ser “desbravada” e “desindianizada”, de outro. Além deste Brasil, é claro, há os muitos outros Brasis, aqueles vividos com bravura e pensados com amargura por todas as minorias administradas pelo Estado segundo os consagrados métodos da expropriação, da exploração, do preconceito, do desprezo e, last but ot least, do massacre puro e simples. E há muitos outros outros-Brasis, que se superpõem contraditoriamente a esses que mencionei: os países espirituais de Machado de Assis, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto; a nação de Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues, Adoniram Barbosa, Dorival Caymmi, João Gilberto, Tom Jobim, Gilberto Gil, Chico Buarque, Itamar Assunção, Chico Science, Caetano Veloso… E Glauber Rocha, e Rogério Sganzerla, e Hélio Oiticica, e Wally Salomão… A identidade brasileira está situada no lugar impossível situado entre esses países de contornos não coincidentes. Mas não há nenhum Brasil que não reflita de algum modo a escravidão e o etnocídio que fazem nossa história.
Desde algum tempo, algumas correntes ideológicas de direita, mas com uma providencial ajuda de certa esquerda muito burra, deblateram contra as “políticas identitárias” ou o “identitarismo”, que é como chamam todo movimento de constituição de coletivos orientado por valores infra- ou supra-nacionais: raça, g_ênero, classe, orientação sexual, etnicidade etc. Suspeito que todos os que rejeitam com desprezo o tal “identitarismo” abririam uma exceção para uma “identidade brasileira” (Brasil acima de tudo), para uma identidade “ocidental cristã” (Deus acima de todos), e para a política que, centrada nestas duas identidades, vem-se dedicando a exterminar quaisquer outras formas de organização coletiva e a destruir a formação de quaisquer territórios existenciais alternativos.
Contas feitas, tudo se passa como se a noção de “identidade” fosse a propriedade privada dos dominantes; quando os dominados a reivindicam — inclusive quando reivindicam suas identidades específicas apoiando-se em sua identidade “brasileira”, isto é, quando lutam pelo direito a ter os direitos amparados pela Constituição Federal —, é como se estivessem a roubar essa preciosa propriedade, como se pretendessem usurpar o lugar dos dominantes, quero dizer, dos brancos (a palavra tem de ir no masculino). Identidade é algo que só quem pode ter são os brancos, de corpo ou de espírito. O portador legítimo da identidade brasileira é uma espécie de Branco transcendental; ele e só ele é o Idêntico, o Sujeito. Ele pode e deve se orgulhar de sua ascendência europeia, sua “limpeza de sangue”, sua fé mui cristã, sua superioridade intrínseca, evidente, natural, sobre todos aqueles a quem ele diz “vocês são diferentes de nós” — a esses que por isso não têm o direito de se dizerem realmente diferentes de “nós”. Pensemos na diferença abissal entre essas duas frases à primeira vista equivalentes: entre o arrogante ”vocês são diferentes de nós”, dirigido pelos senhores do Próprio, os Idênticos, para todos os Outros, e um “nós somos diferentes de vocês”, dirigida a esses Idênticos por todos aqueles que lutam para conquistar sua “própria” alteridade, e que precisam chamá-la um pouco equivocamente de identidade.
A identidade brasileira está na disjunção radical entre essas duas formas de afirmar a diferença.
Tomado de: https://www.academia.edu/84021322/Identidade_brasileira?email_work_card=view-paper