Para Teodoro Granados Alba, i.m.
Apresentação
“César Vallejo: tiempo de opacidad” é um convite para lermos o outro e o eu em um mesmo; o outro como uma dimensão do eu; o eu como uma dimensão do outro; o uno que é – no mínimo – um duo. Um duo não do eu mesmo, mas do outro e do eu ao mesmo tempo. A metáfora dessa perspectiva se encontra na forma comovente com que Pedro Granados tece as primeiras palavras desta obra, remetendo os leitores ao seu universo de experiências afetivas – vividas, sonhadas, ouvidas – atualizadas no presente, para introduzir o tema da opacidade cultural “de modo semejante a como mi madre, ya en la capital del Perú y en ‘español’, para alcanzar las notas más altas de los cantos de la misa dominical, se cambiaba de cultura: viajaba a las procesiones de su pueblo donde se entonaban sentidos cánticos en quechua en honor al Señor de Lampa en Ayacucho; es decir, culturalmente no era una sola persona, sino por lo menos dos”. Nessa perspectiva, Granados nos aponta caminhos de múltiplas poéticas e inquietantes possibilidades de leituras e traduções dos espaços/tempos de César Vallejo e sua importância para a atualidade de nossas vidas cotidianas em uma América/Amazônia crioulizada e em crioulização.
A personalidade forte da escrita de Pedro Granados, ao longo das páginas deste livro, está marcada nas temáticas que norteiam o objeto de sua rica análise: Trilce/Teatro (roteiro, personagens e público), a reconstrução de um diálogo intelectual e artístico César Vallejo e João Cabral de Melo Neto, uma revisita a análise de Trilce I e II e aos poemas póstumos como ponto de partida para articular aos olhos do leitor a glissaniana perspectiva do “pensamento arquipélago” e da “poética da relação” como tecituras do “direito à opacidade” em Vallejo que se reflete na significativa marca do eu/outro, e um exercício de tradução inter-semiótica e inter-atlântica Vallejo/Gauguin. Essas questões e a forma como são abordadas abrem caminhos para importantes dimensões do candente legado de Vallejo, com sua estética para o teatro e a poesia, para a arte e a vida. Uma estética cuja lógica se desmembra em múltiplas faces na possibilidade do agrupar/afastar tudo aquilo que nos integra, ou na percepção de identidades/alteridades como o transbordar de iguais/diferentes reafirmando a dignidade humana para muito além de qualquer essencialismo ou hierarquias colonizatórias. Em Granados, os trânsitos de Vallejo, sujeito do “todo-o-mundo”, são tecidos na imbricação de suas escritas e trajetórias com as escolhas éticas que dão sentido às estéticas desse inquieto poeta no romper com toda forma de “gueto identitário” e suas muitas nuances de enclausuramento do ser. Ser – aqui pensado a partir das premissas pontuadas por Édouard Glissant – que é sempre um sendo. Um sendo que, nesta obra, se manifesta em intervenções articuladoras de teatro, poesia, canto, cinema, pintura, fotografia, sempre em íntima conexão com as escolhas e os engajamentos políticos desse César Vallejo que a colonialidade continua a interditar e segregar do horizonte de formação intelectual dos estudantes de muitas universidades amazônicas.
“César Vallejo: tiempo de opacidad” é um ato de enfrentamento à colonialidade. Essa colonialidade que cega porque faz ver, ler, falar e escrever como se deve, isto é, de maneira obediente, quieta, conformada: síntese da servilidade orgulhosa, envaidecida, medíocre. A colonialidade e seu acervo de poderosas metáforas governam as cabeças e olhares de nossos professores, que as transmitem (in)tolerantes aos seus jovens alunos. Essa colonialidade interdita Vallejo de nossas salas de aula, ambientes artísticos, bares, saraus, colóquios literários, conversas de esquinas, barrancos e beiras de rios amazônicos. Uma interdição do corpo, dos sentidos e dos olhares. Uma interdição que cerceia o acesso à força transfiguradora dos versos, do canto, da poética, da estética política desse peruano do “todo-o-mundo”. Nessa direção, Pedro Granados nos conduz a um mergulho pelos caminhos de Trilce para enfatizar que Vallejo produz uma arte que rompe com as lógicas culturais folclorizadas e com os limites territoriais e linguísticos. Ruptura que se caracteriza de múltiplas maneiras, pontuadas de modo inteligente e sensível por Granados, cuja percepção nos leva a apreender um Vallejo que, em dado contexto, supera o positivismo para arremeter sua percepção lírica contra a metafísica ocidental, base ideológica de sustentação da colonialidade no Peru ou, podemos dizer, na América indígena e afroindígena. Nessa arremetida, o inquieto e transgressor Vallejo atualiza o mito de Inkarrí, reordenando toda uma imaginação coletiva em favor de uma “convivencia social incluyente y utópicamente multicultural”, em franco desafio ao hegemônico mundo colonizador branco e cristão. No âmbito da natureza política que se alimenta dessa resposta/manifesto, “César Vallejo: tiempo de opacidad”, lançado pela Nepan Editora, é um convite para irmos além das servilidades acadêmicas e seus acomodamentos. Poderíamos mesmo dizer que é o firme empunhar de uma bandeira de luta contra tudo o que esteriliza a vida, os afetos, os sentidos. Uma bandeira de luta em defesa do aqui/lá de nossas vivências na terra, do dentro/fora de nossas espacialidades e temporalidades, do encontro/desencontro ou do canto alegre/triste de nossas vidas, do eu/tu de nossas identidades. A identidade para Vallejo é um cronótopo ou o constante deslocamento transnacional, conclui Pedro Granados, e o tempo de sua opacidade é o tempo da realidade vivida que é sempre um “tempo de agora” – um devir – porque se vincula às exigências que nos são feitas no cotidiano carnalizado de nossas existências. Exigências essas que nos impõem fazer escolhas éticas, escolhas marcadas por nossa capacidade de pensar/agir no espaço público, pensar/agir em defesa de nossas igualdades/diferenças e do direito à preservação de todas as formas de vida na terra: somos natureza e cultura e compomos um planeta onde a vida da parte requer a preservação da vida do todo
Gerson Albuquerque
Professor da Universidade Federal do Acre
Centro de Educação, Letras e Artes